Em 2020, na gestão Doria, SSP-SP havia anunciado o banimento do ‘mata-leão’ em abordagens policiais. Cinco anos depois, em resposta a um pedido da Ponte via LAI, PM paulista assume que o M-3-PM ‘não exclui’ eventual aplicação do golpe.
Cinco anos depois de ter anunciado a proibição do uso do “mata-leão” por policiais, a Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) voltou atrás da medida e diz agora que um manual interno que orienta a conduta de seus agentes em abordagens “não exclui” a eventual aplicação do golpe de estrangulamento. A mudança foi descoberta pela Ponte mediante um pedido de esclarecimentos via Lei de Acesso à Informação (LAI).
O suposto banimento do “mata-leão” — também chamado de “chave de pescoço” e “chave de cervical” — havia sido adotado pela Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) em 2020, em um contexto de críticas públicas à forma violenta com que PMs vinham aplicando o golpe em abordagens.
As manobras de imobilização a serem adotadas por policiais são descritas hoje pelo Manual de Defesa Pessoal Policial (M-3-PM), que não prevê expressamente o uso do mata-leão, conforme comunicou o Serviço de Informação ao Cidadão da corporação (SIC-PM) em resposta ao pedido via LAI da reportagem. Além disso, o documento “enfatiza a adoção de técnicas que minimizem riscos e preservem a integridade física do abordado e do policial militar”, argumentou o órgão.
No entanto, os procedimentos que ali estão “não excluem outros que, em face da criticidade do cenário e das circunstâncias do fato em concreto, sejam alternativas imprescindíveis para a preservação da vida e integridade física dos envolvidos, sempre em conformidade com os princípios de legalidade, necessidade, proporcionalidade e razoabilidade”, escreveu também o SIC-PM.
“Em uma ocorrência policial que envolva controle físico, é impossível prever a infinidade de situações que ocorrerão, mas, o referido Manual, busca habilitar e qualificar o policial militar para esses casos, garantindo que as técnicas aplicadas estejam alinhadas com a doutrina vigente e os preceitos de segurança e dos Direitos Humanos”, acrescentou a PM, ao contextualizar que o “mata-leão” não está, portanto, proibido como havia sido anunciado.
Após o retorno do SIC-PM via LAI, a reportagem questionou a SSP-SP, mediante contato com sua assessoria de imprensa, se a proibição antes anunciada foi de fato implementada — já que, de lá para cá, a Ponte noticiou diversos casos em que policiais seguiam aplicando o golpe de estrangulamento — e, em caso positivo, quando teria sido revertida e por qual razão.
Não houve retorno até esta publicação.
A proibição ao golpe “mata-leão” havia sido noticiada, a princípio, pelo UOL em julho de 2020, ocasião em que o M-3-PM passava por um processo de revisão. À época, outros veículos de imprensa também repercutiram a informação, como o g1 e a Agência Brasil, de que a SSP-SP havia confirmado ter banido o golpe e estudava naquela altura novas técnicas de contenção em abordagens.
O anúncio do banimento naquele ano, ainda sob gestão do governador João Doria (PSDB), surgiu em meio à repercussão de uma série de casos em que policiais militares aplicaram o golpe de modo desproporcional em abordagens. A Ponte noticiou, à época, o episódio de duas jovens imobilizadas deste modo em um protesto. Mostrou também que um idoso foi morto por um PM, de quem era vizinho, justamente ao sofrer um “mata-leão”.
Nas redes sociais, ganharam muita projeção naquele ano o caso de uma mulher negra de 51 anos que desmaiou ao ter o pescoço pisoteado por um policial e o de jovem negro retirado de dentro de casa por PMs ao ser imobilizado com o uso do “mata-leão” — na ocasião, uma pessoa que filmava a cena alertava aos policiais que a vítima rendida não estava conseguindo respirar.
Foi também em 2020 que repercutiu mundialmente o caso do norte-americano George Floyd, um homem negro de 46 anos que foi filmado enquanto agonizava até morrer, estrangulado por um policial branco que ajoelhou sobre o seu pescoço e também ignorou apelos de que não conseguia respirar. O policial acabou condenado após grande pressão popular.
Além da proibição à chave de pescoço, também como medida para conter a violência policial, o governo Doria anunciou em 2020 o início do programa Olho Vivo — hoje substituído pelo Muralha Paulista —, com o qual passaria a implementar o uso de câmeras corporais pela PM. No início da gestão, contudo, Doria incentivou a letalidade policial, afirmando que a polícia passaria a “atirar para matar” em seu governo.
A Ponte voltou a questionar a SSP-SP sobre o “mata-leão” ainda estar banido ou não sob o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) em janeiro deste ano, quando noticiou o caso de um policial civil aposentado que desmaiou durante uma abordagem ao ser imobilizado com a aplicação do golpe — a vítima lida com problemas psicológicos até hoje em razão do episódio e busca reparação na Justiça, por entender que a conduta dos PMs foi desproporcional e abusiva.
A PM, que havia instaurado um inquérito policial militar (IPM) para averiguar a conduta dos agentes envolvidos no caso, isentou todos eles de qualquer responsabilização. A investigação, à qual a reportagem teve acesso, concluía que a aplicação do “mata-leão” não havia divergido do que prevê o M-3-PM. O encarregado pelo IPM mencionava que tal entendimento estava fundamentado pelo artigo 11 do manual. O dispositivo foi transcrito no documento: “As técnicas, táticas e procedimentos previstos neste Manual não excluem outros que, em face da criticidade do cenário e circunstâncias do fato em concreto, sejam imprescindíveis para a preservação da vida e integridade física dos envolvidos”.
A citação é semelhante a um trecho presente na resposta do SIC-PM ao pedido da Ponte via LAI.
Esse mesmo caso foi investigado também por um inquérito da Polícia Civil, no qual houve entendimento diverso, de que a aplicação do golpe era ilegal. A investigação fazia menção a reportagens de 2020 para fundamentar a tese de que o “mata-leão” é proibido.
À época em que noticiou o episódio, em razão dos entendimentos divergentes da PM e da Polícia Civil, a reportagem questionou a SSP-SP via assessoria de imprensa por duas vezes se o golpe era ainda proibido — e se havia menção expressa desse banimento em alguma normativa interna da Polícia Militar. Não houve retorno conclusivo da pasta sobre os questionamentos.
“A Polícia Militar informa que o Manual de Defesa Pessoal Policial, atualmente em vigor, foi publicado em 25 de outubro de 2021. Juntamente com outros dispositivos normativos, como os Procedimentos Operacionais Padrão (POP) e as Instruções de Comando, o documento define as regras de conduta e atuação dos policiais militares em todo o estado de São Paulo”, escreveu a SSP-SP na ocasião.
“Esses procedimentos são periodicamente revisados e aprimorados, com o objetivo de reforçar a proteção da população e dos policiais em todas as ocorrências, bem como garantir o cumprimento da legislação vigente. A atualização das normas é realizada com total transparência e sem comprometer as diretrizes que orientam a atividade policial”, concluía a nota, sem tratar especificamente do golpe.
IPM que averiguava conduta de policiais militares em caso noticiado pela Ponte concluiu que aplicação do golpe de estrangulamento não “foge ao Manual de Defesa Pessoal Policial” (Foto: Reprodução)
A Ponte solicitou à Polícia Militar paulista, mediante um primeiro pedido de informação via LAI, o acesso à íntegra do M-3-PM. A corporação negou a solicitação, sob a justificativa de que o documento “apresenta dados sensíveis que podem ser explorados de maneiras indevidas resultando em danos à população e comprometimento da segurança pública em todo o Estado”.
O manual, ainda segundo o SIC-PM, foi classificado como documento sigiloso por meio de Termo de Classificação da Informação (TCI) 02/SICPM/2020, que teve como autoridade classificadora o então coronel da PM Marcus Vinícius Valério — atual subprefeito da Mooca, em São Paulo, na gestão Ricardo Nunes (MDB) —, por força da resolução SSP nº 89, de 31 de agosto de 2018.
Frente à negativa, a reportagem fez então um segundo pedido de informação, desta vez requisitando esclarecimento sobre o “mata-leão” estar banido ou não da Polícia Militar e mediante qual normativa. Passados 20 dias, período máximo estabelecido em lei para que respondesse, a PM-SP prorrogou o prazo por mais dez, possibilidade também prevista pela Lei 12.527/2011, “em função de necessidade de encaminhamentos internos”.
Veio então uma nova resposta do SIC-PM na qual assumiu que o golpe “mata-leão” não é vetado a depender da circunstância, embora não esteja expressamente previsto no M-3-PM. O órgão não especificou qual dispositivo do manual fundamenta isso, conforme solicitado pela reportagem. A Ponte entrou com recurso para que também haja esclarecimento sobre isso, mas ainda não obteve retorno.
“Prezado solicitante,
O Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) é uma modalidade de serviço de atendimento ao público que deve receber por qualquer meio as solicitações acerca das informações referentes à documentos, dados e informações custodiadas pelo poder público, sendo, portanto, um serviço de “busca e fornecimento” das respostas nos prazos legalmente definidos que envolvem localização, processamento e análise de documentos, em atenção a sua solicitação quanto a utilização da aplicação do golpe de chave de pescoço (mata leão), esclarecemos que:
A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) adota diretrizes específicas para o controle físico de indivíduos em suas abordagens, conforme descrito no Manual de Defesa Pessoal – 3ª Edição (M-3-PM).
Esse documento regulamenta a aplicação de técnicas e procedimentos de defesa pessoal policial utilizados pelos policiais militares. Não há menção expressa no M-3-PM prevendo a utilização do golpe de chave de pescoço, popularmente conhecido como “mata-leão”, como técnica de contenção ou imobilização, nesse sentido, o manual enfatiza a adoção de técnicas que minimizem riscos e preservem a integridade física do abordado e do policial militar, porém, estabelece que as técnicas, táticas e procedimentos insertos em seu bojo não excluem outros que, em face da çriticidade do cenário e das circunstâncias do fato em concreto, sejam alternativas imprescindíveis para a preservação da vida e integridade física dos envolvidos, sempre em conformidade com os princípios de legalidade, necessidade, proporcionalidade e razoabilidade.
Por fim, como é cediço, em uma ocorrência policial que envolva controle físico, é impossível prever a infinidade de situações que ocorrerão, mas, o referido Manual, busca habilitar e qualificar o policial militar para esses casos, garantindo que as técnicas aplicadas estejam alinhadas com a doutrina vigente e os preceitos de segurança e dos Direitos Humanos.
Atenciosamente.
Serviço de Informação ao Cidadão da Polícia Militar do Estado de São Paulo – SIC PM”
Mín. 20° Máx. 31°
Mín. 20° Máx. 32°
ChuvaMín. 20° Máx. 28°
Chuvas esparsas